Mutarelli, Lourenço. A arte de produzir efeito sem causa. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 206 páginas.
“O metrô está vazio. Já passa das onze. Júnior carrega a expressão da desilusão e uma pequena mala. Respira com dificuldade pela boca. Seu rosto parece uma máscara.” Assim, com o rosto feito máscara, inicia-se o caminho do personagem do romance de Lourenço Mutarelli de volta à casa do pai. Júnior anda com dificuldade, carregando a dor e a vergonha de ter sido traído pela esposa. Deixando para trás casamento, filho, emprego e a pequena mala que carregava, roubada por uns garotos, Júnior entrega-se ao sofá, às reminiscências e às miudezas do cotidiano. Como conseguir dinheiro para o próximo cigarro? Como lidar com a imagem da traição? O que fazer com o tempo? O que é o tempo? A hora é a mesma. Tudo se repete. Os sonhos, as lembranças, as cenas, os caminhos. A memória de quem há pouco ele era confunde-se com a memória da infância, o pai mistura-se com o filho e o filho com ele mesmo. Afinal, ele não é mais do que Júnior, uma cópia do pai. Desse pai que, por fim, ele percebe “que é uma réplica de borracha, e ainda por cima mal feita”. Só há máscaras, bonecos e impostores no novo mundo de Júnior. Ele ainda se esforça por fingir que acredita no real, para sobreviver. Mas as palavras não dão conta. Afasia.
A arte de produzir efeito sem causa fala de trauma e de loucura. As ilustrações também de autoria de Lourenço Mutarelli, que antes de tornar-se escritor era quadrinista, os desenhos e tabelas obsessiva e infinitamente compostas por Júnior tornam visível, embora não compreensível, o angustiante processo através do qual mundo, memória e palavra vão perdendo contato para o personagem. Mas o livro fala, simultaneamente, de cotidiano, de objetos, de memória. Mutarelli nos oferece o cheiro, a textura e os sons dos discos de vinil, dos azulejos cor rosa do banheiro, do papel pardo do pão. Por um momento, chega-se proustianamente a imaginar que a reminiscência ajudará o personagem a reencontrar-se no tempo. Os tempos, no entanto, são outros.
Ao ler o quarto romance de Lourenço Mutarelli e seu primeiro em uma grande editora (a Cia da Letras), o leitor familiarizado com o escritor certamente reconhecerá o asfixiante cenário típico da baixa classe média urbana brasileira, a crueza com que constrói um personagem derrotado, as obsessões sexuais, as necessidades financeiras, a corrosão do sentido. Mas vejo nesse uma diferença fundamental com relação aos livros anteriores. Se em O Cheiro do Ralo (2002) e Natimorto (2004), seus dois primeiros romances – não à toa adaptados para o cinema – reconhecemos a marca do romance-roteiro cinematográfico que se popularizou no Brasil, na década de 90, com a temática urbana da violência, do individualismo decadente e da falta de projetos, em A Arte de Produzir Efeitos sem Causa me parece possível escutar, em meio ao desencanto, o afeto. A “delicadeza”, para utilizar a palavra de Denilson Lopes, insinua-se no cotidiano que Júnior passa a compartilhar com o pai e com Bruna, a estudante de arte que aluga um quarto no apartamento. A atenção do narrador ao gesto e ao detalhe areja uma narrativa que de outro modo seria asfixiante. Mesmo que sutilmente, vislumbra-se a possibilidade da intimidade, do encontro, da empatia. A compaixão de Bruna, que de certo modo é vítima das obsessões e surtos de Júnior, é tanta que chega a fazer com que a menina pense que está também enlouquecendo (co-paixão). A diferença se traduz na narrativa, que nos primeiros romances era fragmentada, com personagens anônimos, e em primeira pessoa, e ganha aqui, embora mantenha uma estrutura enxuta, personagens bem descritos e um narrador (também empático) em terceira pessoa.
Permanece, no entanto, uma recusa a justificar, a explicar a dor e, por fim, a redimi-la. A loucura de Júnior e seu sofrimento são colocados como enigmas no início do romance apenas para nos levar à conclusão de que a decifração do enigma não importa. Se o autor chega a usar artifícios clássicos da trama policial, como cartas anônimas e mensagens cifradas, é apenas para deixá-los em suspenso. Embora os personagens andem angustiadamente em busca de uma explicação para a mudança de Júnior – vão a médicos, investigam correios anônimos –, a cada insinuação causal, seja médica ou mágica, sabemos que ela é insuficiente. Do mesmo modo como não há causa a decifrar, também parece não haver cura. Nem através da palavra nem do afeto. E se isso é em parte frustrante, é também a condição de possibilidade de ambos, palavra e afeto, emergirem como puro gesto, sem nenhuma utilidade.
Carolina Sá Carvalho (Rio de Janeiro, 1984) es estudiante doctoral en el Departamento de Español y Portugués de la Universidad de Princeton. Obtuvo su bachillerato y su maestría en Comunicación y Cultura en la Universidade Federal do Rio de Janeiro, en donde se dedicó a estudiar sobre fotografía y sufrimiento. Publicó algunos artículos académicos y escribió un guión de cine.