María Julia Rossi resenha Sônia Roncador (Brasil)

Quem limpa a casa da ficção?

 Sónia Roncador. A Doméstica imaginária. Literatura, testemunhos e a invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999). Brasília, DF: Editora UnB – Editora Universa, 2008.

 roncadorEm A Doméstica imaginária. Literatura, testemunhos e a invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999), Sônia Roncador aborda a figura da empregada doméstica não tanto em relação à figura histórica, de carne e osso, que trabalha em casas alheias fazendo faxina e outras tarefas domésticas, mas também considerada na sua condição de representação no âmbito das letras. Esta ênfase na condição ficcional ou de imagem construída da empregada doméstica permite à autora operações críticas lúcidas e esclarecedoras, concentrando-se nas chaves ideológicas e sociológicas que revelam essas figuras, sem perder de vista os fatos históricos mais importantes das situações de produção específicas de cada um dos momentos analisados e seus contextos.

O fenômeno de leitura é também parte dos interesses que este estudo apresenta, inscrito em uma sólida tradição dos estudos culturais. Como se pode ver na apresentação do projeto, Roncador se propõe a rastrear as engrenagens que funcionam sob a representação da empregada doméstica e que produzem certos efeitos de leitura (tanto no contexto em que foram produzidas quanto hoje em dia):

Como argumento neste livro, o estudo dos usos estratégicos das mediações literárias da empregada doméstica ao longo do século XX revela que sua inclusão na literatura brasileira esteve menos a serviço de uma práxis política a favor das domésticas que da necessidade do escritor de se autoconstituir como educador, redentor das culturas afropopulares, sujeito-que-cuida-outro-social e, finalmente, intelectual solidário. Em última instância, o uso de suas mediações esteve mais a serviço dos discursos de onde elas foram apropriadas que de uma alteração na hierarquia social de valores e poderes, na qual ela (a doméstica) ainda ocupa uma das posições mas politicamente frágeis e estigmatizadas da sociedade brasileira. (9)

O estudo, que abarca um século inteiro, o século XX, concentra-se em quatro instâncias, cronologicamente propostas, da literatura brasileira, que vão da a representação da mucama na Belle Époque, incluindo o que Roncador chama de “mitos românticos da mãe preta e da mucama mulata” (8), até os testemunhos das próprias empregadas domésticas nas últimas décadas do século. As quatro partes do livro traçam um arco temporal que percorre o século XX, em diferentes gêneros textuais: em primeiro lugar, estão as obras destinadas ao público burguês da virada dos séculos XIX-XX, imediatamente posterior à abolição da escravidão, onde o livro se enfoca no estudo das novelas de Júlia Lopes de Almeida. Segundo, a autora analisa as “memórias de infância modernistas” de José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade e os primeiros ensaios de Gilberto Freyre. Logo depois, apresentam-se os jornais massivos de meados do século, com um foco particular na contribuição jornalística de Clarice Lispector. Finalmente, examinam-se as produções testemunhais de empregadas domésticas nas décadas de 1970 e 1980, em um contexto social e político onde os movimentos sociais e populares abriam o espaço para as vozes dos historicamente oprimidos.

O movimento, então, é cronológico como Roncador o propõe, mas também segue uma sutil trajetória de crescente autonomia ou de independência das vozes das criadas. A paulatina subjetivação é notável no curso dos capítulos do livro: as domésticas passam de mero objeto da representação – submetido não só a normas de comportamento na vida “real”, mas também a estritas normas discursivas da representação –, a assumir uma voz própria que enuncia o testemunho pessoal.

Tomando como ponto de partida o livro The Servant’s Hand: English Fiction from Below, de Bruce Robbins, Roncador constrói um aparato teórico que inclui outras ideias, como os conceitos de táticas e estratégias, de Michel de Certeau, e noções foucaultianas extraídas de Vigiar e punir, além de muitas fontes históricas tanto primárias como secundárias. Finalmente, a autora enriquece sua proposta de análise com a inclusão de bibliografia literária e, sobretudo, de aproximações críticas pertinentes a cada um dos gêneros concretos que analisa, como a autobiografia, o jornalismo e o testemunho, estabelecendo uma perspectiva complexa que atende à especificidade de cada gênero.

Um dos aspetos mais notáveis das análises de Roncador neste livro é a articulação constante dos eixos diacrônico e sincrônico das obras estudadas, produzindo assim uma leitura complexa e profunda. Com uma prosa clara, associa fenômenos históricos, sociológicos e políticos para ressaltar a diversidade de fatores que intervêm na produção dos escritos. Desta maneira, oferece iluminadoras ferramentas para a análise literária e põe em prática o ideal dos estudos culturais, em uma articulação multidisciplinar e atenção simultânea a vários aspectos inter-relacionados. Um excelente exemplo da complexidade e inteligência do movimento crítico da autora é a introdução de A Paixão segundo G.H. na terceira parte. Inicialmente, Roncador explica o contexto histórico dentro do qual Tania Kauffman escreve e publica o seu manual A aventura de ser dona-de-casa (dona-de-casa vs. Empregada): um assunto sério visto com bom humor, no ano 1975. Além da apresentação dos dois tipos de manuais que existiam na época, discute as ansiedades que este tipo de obra reflete, em um momento “em que as empregadas domésticas começam a conquistar os primeiros direitos trabalhistas […] após pelo menos uma década de luta organizada por meio de suas associações profissionais” (137). Roncador agrega também um detalhe de arquivo que ilumina o panorama: a presença de um artigo de um jornal francês sobre as empregadas domésticas, a partir de um ponto de vista psicológico e sociológico. É nesse contexto intricado que Roncador especula que Lispector apoiou a publicação do manual escrito pela irmã dela e relaciona esta idéia com o fato da crescente presença das empregadas domésticas tanto nas crônicas femininas e nas colunas jornalísticas (onde também aproveita para confrontar a imagem da empregada doméstica, assinalando o uso de estereótipos), quanto na ficção de Lispector. A comparação deste panorama diacrônico com as obras literárias de Lispector dentro de uma linha sincrônica complementa o percurso da crítica, onde desenha continuidades e adverte inovações temáticas entre os romances. Como se pode observar neste caso, Roncador elabora um sagaz tecido histórico, conceitual e ideológico para sustentar a crítica literária que apresenta a continuação da construção deste complexo marco.

O maior logro da autora, na minha opinião, são suas reflexões a respeito? da construção simbólica da “categoria feminina profissional mais numerosa” no Brasil. Teria sido útil encontrar uma conclusão que reunisse essas reflexões no encerramento do livro, mas me parece que muitas de suas conclusões encontram-se claramente articuladas na “Apresentação”. Sônia Roncador, que já havia escrito um lúcido livro sobre as últimas obras de Lispector, publicado anos antes (Poéticas do empobrecimento. A escrita derradeira de Clarice, Annablume, 2002), não somente recorre neste novo projeto os estereótipos associados às empregadas domésticas mas também suas representações jornalísticas e ficcionais, propondo um diálogo entre elas. A combinação da especificidade das obras e gêneros analisados com um arco histórico que percorre o século XX, incluindo a análise dentro de um marco sociológico, enriquece a leitura das obras.

María Julia Rossi nació en Rosario, Argentina, donde estudió letras en la UNR y teatro y actuación en la Escuela Nacional de Teatro y Títeres. Vivió cuatro años en Barcelona, España, donde tuvo ocasión de viajar, tradujo y llevó a cabo diversos trabajos relacionados con el mercado editorial. Tiene un doctorado en literatura latinoamericana por la University of Pittsburgh y en su tesis estudió la representación del servicio en obras de Silvina Ocampo, Elena Garro y Clarice Lispector. Actualmente se desempeña como profesora en el Department of Modern Languages and Literature de John Jay College of Criminal Justice, CUNY, en Nueva York. Su investigación actual repara en la invención del “lector común” en Argentina a través de diversas estrategias culturales disímiles, como las traducciones, los prólogos y las colecciones de clásicos. Para El Roommate ha reseñado a Roberto Bolaño y a Reinaldo Laddaga

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